É lógico que Deus existe? – I

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A pergunta que abre essa nova série de relatos foi, implicitamente, uma pergunta fulcral para a filosofia medieval. E a palavra “lógico” presente no título não deve ser entendida de forma inocente em seu amplo sentido, mas com um sentido mais preciso de modo tal que a pergunta possa ser reformulada de outra forma: posso provar logicamente que Deus existe? Essa é a pergunta base que guiará a sequência de aulas por vir, e ela também pressupõe um instrumental que será desenvolvido durante seu percurso.

Começamos a aula com a leitura de um trecho de Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, em que o personagem José Arcadio Buendía pretende comprovar a existência de Deus ao captar sua imagem através do daguerreotipo, ou pôr fim a suposição de sua existência.images

A leitura do texto não ofereceu qualquer dificuldade, ainda que os alunos o tenham acompanhado sem saber aonde se queira chegar por sua leitura. Questionei a eles, terminada a leitura, a que conclusão chegara José Arcadio Buendía ao se dar por satisfeito em não conseguir plasmar a imagem de Deus. Os alunos responderam, um tanto inseguros, que ele concluiu que Deus não existe. Escrevi isso no quadro: (C) Deus não existe, e assinalei ao lado, escrito em laranja, que essa era a conclusão. Perguntei ainda por que o personagem chegou a ela, o que a estaria embasando. Alguns disseram logo que sua imagem não era captável. Reformulei a sentença para melhor satisfazer minhas intensões: (B) Deus não é daguerreotipável (esta última palavra tendo de ser substituída por “fotografável” por questões de dicção). Disse aos alunos que chamaríamos essa proposição de premissa, e mais especificamente, que essa seria nossa premissa 2. Por fim, disse que faltava ainda outra premissa, uma que fosse capaz de unir aquilo que estava presente tanto na segunda premissa como na conclusão.

enioEssa era uma pergunta, de certa forma, complexa, e não esperava que os alunos me respondessem rapidamente. Esperei alguns prolongados segundos, olhava para cada um na espera de uma resposta, e como ela não viesse, comecei a induzir suas perspectivas. Primeiro perguntei o que se repetia na premissa e na conclusão, pergunta que não entenderam muito bem pela falta de especificidade. Perguntei, então, quais as palavras que se repetiam em cada uma das proposições, e estando clara a pergunta, responderam que era “Deus”. Circulei a palavra e perguntei o que sobrava. Responderam que “fotografável” e “existe”. Dada essa resposta, pedi que eles pensassem em uma premissa que usasse essas palavras e que nos permitissem chegar à conclusão ao ser articulada com a premissa 2. Alguns não entenderam e estavam tentando formular uma sentença usando a palavra Deus, se não me engano, numa tentativa de falsificar uma das sentenças. Finalmente, um aluno disse que a primeira premissa era que “Tudo o que é daguerreotipável existe”, e eu disse que estava bastante próximo da resposta, e já adiantando pra não prolongar o mistério, disse que era necessário inverter. Então uma aluna concluiu que a premissa era: (A) Tudo o que existe é daguerreotipável. A diferença entre a primeira e a segunda formulação é bastante sensível, mas me parece claro que, ainda que tudo que seja daguerreotipável exista, nem tudo que existe seria necessariamente daguerreotipável. Assim temos o seguinte argumento:

(A) Tudo o que existe é daguerreotipável.

(B) Deus não é daguerreotipável.

(C) Deus não existe.

Passei, então, para nosso segundo exercício: disse a eles que recentemente o deputado Jair Bolsonaro havia sido considerado réu no STF. Perguntei aos alunos o porquê de ter se tornado réu, e então responderam que era porque havia afirmado que Maria do Rosário (M.R) não merecia ser estuprada porque ela era feia. Na tentativa de reconstruir um argumento, perguntei a eles qual era a conclusão de Bolsonaro. Responderam que era que (F) M.R não merece ser estuprada, com exceção de um aluno que colocou a justificativa junto. Perguntei qual a justificativa oferecida pelo Bolsonaro, ao que responderam que era que (E) M.R é uma mulher feia. Perguntei, por fim, qual seria a premissa que estaria implícita e que nos permitiria chegar à conclusão. Após terem enfrentado a dificuldade do primeiro exercício, com muita facilidade responderam que a primeira premissa era (D) toda mulher bonita merece ser estuprada. Chamei a atenção para o fato de que, na primeira premissa, usávamos a palavra bonita e que ela não era repetida na segunda, e então alguns alunos disseram que “feia” poderia ser entendida como “pessoa não bonita”.

(D) Toda mulher bonita merece ser estuprada.

(E) M.R. é uma mulher feia (não é bonita)

(F) M.R não merece ser estuprada.

Disse ainda que poderíamos conceder um direito de resposta aos defensores do deputado, que diziam que ele afirmou isso porque (G) nenhuma mulher merece ser estuprada, e que, porque (H) M.R é mulher, portando, (I) M.R não merece ser estuprada. Ora, onde está o “feia” que aparecia na justificativa anterior, então?

(G) Nenhuma mulher merece ser estuprada.

(H) M.R é uma mulher.

(I) M.R não merece ser estuprada.

Por fim, havia ainda outro argumento que poderia ser reconstruído em sua defesa, a saber:

(J) Nenhuma mulher feia merece ser estuprada.

(K) M.R é uma mulher feia.

(L) M.R não merece ser estuprada.

Um aluno disse que essa reconstrução era uma “estranha defesa” em favor do deputado. Por fim, disse que todos esses argumentos eram silogismos. Pedi que me dissessem, visto os exemplos que possuíamos, quais suas características. Uma aluna respondeu que possui três proposições, uma outra que duas são premissas e uma a conclusão. Disse que faltava apenas uma coisa para compreendermos a definição de silogismo. Eles são articulados pelo termo médio, isto é, pelos termos que se repetem em ambas as premissas. Perguntei, pois, se o seguinte argumento seria um silogismo:

(M) Sócrates foi mestre de Platão

(N) Platão foi mestre de Aristóteles

(O) Logo, Aristóteles foi mestre de Alexandre.

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Batbom e batmaul #16 – Silogismo

A maioria dos alunos responderam que era um silogismo. Perguntei o porquê. Não souberam muito bem como responder, mas imagino que estavam atentos ao fato de terem três proposições. Perguntei qual era a conclusão do argumento, o que uma aluna respondeu sem dúvidas que era (O), pois o “logo”, que pus propositalmente, indicava isso. Perguntei, então, se a conclusão se seguia das premissas. Uns alunos responderam que sim, outros estavam incertos. Até que alguma aluna disse, não lembro exatamente suas palavras, que Aristóteles ser professor de Alexandre não parecia decorrer dos fatos anteriores. Eu confirmei o que havia dito, e para confirmar, perguntei qual seria o termo médio do argumento. Disse: “Olha, ‘Platão’ se repete nas duas premissas”, circulei Platão, “mas ‘Platão’ não está articulando os termos da primeira com o da segunda premissa, pois ‘Sócrates’ não aparece na conclusão”. Concluímos, por fim, que de fato, tal argumento não era um silogismo.

Autor: Matheus Penafiel

Formado em Filosofia pela UFRGS e especialista em Ensino de Filosofia pela UFPel. Professor de filosofia e sociologia na rede privada de Porto Alegre e Canoas. Escritor de fim de semana.

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